Assim que entrei no consultório, o Jorge disse-me:
— Tenho uma história para te contar.
— Uma história? Porquê?
— Não sei, achei que te podia ajudar.
— Está bem — disse eu, confiando nele.
— Está bem — disse eu, confiando nele.
Era uma aldeia muito pequena.
Tão pequena que não figurava nos grandes mapas nacionais.
Tão pequena que tinha apenas uma praça diminuta e, na sua única praça, uma única árvore.
Mas as pessoas adoravam a sua aldeia, amavam a sua praça e a sua árvore: um enorme umbuzeiro que se encontrava precisamente no centro da praça. E também no centro da vida quotidiana dos habitantes da aldeia: todas as tardes por volta das sete, depois do trabalho, os homens e as mulheres da aldeia encontravam-se na praça, recém-lavados, penteados e vestidos, para dar duas voltinhas ao umbuzeiro.
Durante anos, os jovens, os pais dos jovens e os pais dos pais dos jovens cruzavam-se diariamente à sombra do umbuzeiro.
Ali se haviam fechado negócios importantes, se haviam tomado decisões relativas ao município, celebrado casamentos e recordado os mortos durante anos e anos.
Um dia, começou a acontecer uma coisa diferente e maravilhosa: numa raiz lateral, saído do nada, brotou um raminho verde com duas únicas folhas viradas para o sol.
Era um rebento. O primeiro rebento que o umbuzeiro dera, desde sempre.
Depois da comoção, criou-se um comité para organizar uma festa em honra daquele acontecimento.
Para espanto dos organizadores, nem toda a gente da aldeia acorreu à celebração. Havia quem achasse que o rebento traria complicações.
A verdade é que, uns dias depois de ter aparecido o primeiro rebento, começou a brotar outro. E, no espaço de um mês, mais de uma vintena de raminhos verdes tinham assomado das velhas raízes do umbuzeiro.
A alegria de uns e a indiferença de outros iam durar pouco.
O alerta foi dado pelo guarda da praça. Algo se passava com o velho umbuzeiro. As suas folhas estavam mais amarelas do que nunca, estavam frágeis e caíam facilmente. A cortiça do tronco, que outrora era carnuda e macia, ficara ressequida e quebradiça. O guardião fez o seu diagnóstico.
— O umbuzeiro está doente.
E talvez morresse.
Nessa tarde, durante o passeio vespertino, estalou a discussão. Alguns começaram a dizer que a culpa era dos rebentos. Os seus argumentos eram concretos: tudo estava bem antes de eles aparecerem.
Os defensores dos rebentos diziam que uma coisa não tinha nada a ver com a outra e que os rebentos asseguravam o futuro, se acontecesse alguma coisa ao umbuzeiro.
Expostas as diferentes opiniões, formaram-se dois grupos claramente antagónicos. Um que defendia o velho umbuzeiro, outro que defendia os novos rebentos.
Sem saber como, a discussão tornou-se cada vez mais calorosa e os dois grupos distanciaram-se cada vez mais. Chegada a noite, decidiram tratar o assunto na reunião municipal do dia seguinte, para acalmar os ânimos.
Mas os ânimos não se acalmaram. No dia seguinte, os Defensores do Umbuzeiro, como começaram a apelidar-se, disseram que a solução do problema era voltar atrás. Os rebentos estavam a tirar as forças ao velho umbuzeiro e a actuar como parasitas da árvore. Tinham, portanto, de destruir os rebentos. Os Defensores da Vida, como se havia baptizado o segundo grupo, escutaram alvoroçados, porque também eles se tinham reunido para encontrar uma solução. Tinham de arrancar o velho umbuzeiro, que na verdade já cumprira o seu ciclo. A única coisa que estava a fazer era atirar sal e água aos recém-nascidos. Além disso, era inútil defender o umbuzeiro porque, de qualquer forma, a velha árvore já estava praticamente morta.
A discussão terminou em briga e a briga em escaramuça, onde não faltaram gritos, insultos e pontapés. A polícia pôs fim à contenda, mandando toda a gente para casa.
Os Defensores do Umbuzeiro reuniram-se nessa noite e decidiram que a situação era desesperada, já que os seus estúpidos adversários não iam ouvir os seus argumentos e, como tal, decidiram agir. Armados com tesouras de podar, paus e picaretas, decidiram atacar: destruídos os rebentos, a situação a negociar seria diferente.
Chegaram à praça todos contentes.
Ao aproximarem-se da árvore, viram que um grupo de pessoas estava a empilhar toros à volta do umbuzeiro. Eram os Defensores da Vida, que planeavam lançar-lhe fogo.
Ambos os grupos de defensores embrenharam-se noutra discussão, mas desta vez as suas mãos estavam armadas de ódio, rancor e vontade de destruir.
Vários rebentos foram pisados e danificados durante a escaramuça.
O velho umbuzeiro também sofreu danos graves no tronco e nos ramos.
Mais de vinte defensores de ambos os bandos acabaram a noite internados no hospital, com feridas de maior ou menor gravidade.
Na manhã seguinte, a praça tinha um aspecto completamente diferente. Os Defensores do Umbuzeiro tinham levantado uma cerca à volta da árvore e guardavam-na permanentemente com quatro pessoas armadas.
Os Defensores da Vida, por seu lado, tinham cavado um fosso e instalado uma vedação de arame farpado à volta dos rebentos que restavam, a fim de repelir qualquer ataque.
No resto da aldeia, a situação também se tornara insustentável: cada grupo, determinado a conseguir mais apoio, politizara a situação e obrigava o resto dos habitantes a tomar uma posição. Quem defendia o umbuzeiro era inimigo dos Defensores da Vida e quem defendia os rebentos tinha, por conseguinte, de cultivar um ódio de morte pelos Defensores do Umbuzeiro.
Por fim, decidiu-se deixar a decisão ao juiz de paz — que cumpria também as funções de sacerdote da pequena igreja da aldeia — que deveria dar o seu veredicto no domingo seguinte.
Dividido o público por uma corda, os dois bandos agrediam-se verbalmente. A gritaria era terrível e ninguém se conseguia fazer ouvir.
De repente, abriu-se a porta e, pelo corredor, seguido pelo olhar de ambas as partes, avançou o Velho, apoiado na sua bengala.
O Velho, que devia ter mais de cem anos, fundara aquela aldeia na sua juventude, planificara as suas ruas, sorteara os lotes de terreno e, claro está, plantara a árvore.
O Velho era respeitado por todos e a sua palavra conservava a lucidez que o acompanhara durante toda a sua vida.
O ancião afastou os braços que se ofereciam para o ajudar e, com dificuldade, subiu ao palco e falou.
— Seus tontos! — disse. — Autoproclamam-se Defensores do Umbuzeiro, Defensores da Vida... Defensores? Vocês são incapazes de defender seja o que for, porque a vossa única intenção é prejudicar todos aqueles que pensarem de maneira diferente da vossa.
Não se apercebem do vosso erro e tanto uns como os outros estão equivocados.
O umbuzeiro não é uma pedra. É um ser vivo e, como tal, tem um ciclo de vida. Esse ciclo inclui dar vida aos que continuarão a sua missão. Isto é: inclui preparar os rebentos para fazer deles novos umbuzeiros.
Mas os rebentos, seus estúpidos, ainda mal são umbuzeiros. Por isso, não poderiam viver se o umbuzeiro morresse e a vida do umbuzeiro não teria sentido se não fosse capaz de transformar-se numa vida nova.
Preparem-se, Defensores da Vida. Treinem e armem-se. Em breve chegará a hora de deitar fogo à casa dos vossos pais com eles lá dentro. Porque em breve eles envelhecerão e começarão a estorvar o vosso caminho.
Preparem-se, Defensores do Umbuzeiro. Pratiquem com os rebentos. Devem estar preparados para pisar e matar os vossos filhos quando eles quiserem substituir-vos ou superar-vos.
E autoproclamam-se vocês «Defensores»!
Vocês só querem é destruir.
E não se apercebem de
que destruindo,
destruirão também,
inexoravelmente,
tudo aquilo que pretendem defender.
»Pensem!
Não vos resta muito tempo...
E dito isto, desceu lentamente do palco e caminhou para a porta, perante o silêncio de todos.
... E foi-se embora.
O Jorge ficou calado. Eu não consegui evitar que as lágrimas me caíssem dos olhos. Levantei-me e fui-me embora, em silêncio, cansado e com as ideias claras...
Havia tanto que fazer!
Jorge Bucay
Deixa-me que te conte
Cascais, Editora Pergaminho, 2004